Mito da mulher negra resistente à dor dificulta tratamento da anemia falciforme

Laryssa Campos*

As fortes dores nas pernas, que chegavam até a cintura, fizeram Ivani Junia lembrar, quando tinha 25 anos, as frequentes crises de dor da infância. Esses inexplicáveis episódios só foram esclarecidos quando adulta e com o nascimento do primeiro filho. O teste do pezinho identificou que o bebê tinha traços de anemia falciforme, o que levou ao diagnóstico de Ivani como portadora da doença. Assim começou sua percepção da complexidade de ser uma paciente com anemia falciforme, o que, de acordo com ela, ainda tem como agravante a falsa ideia de que mulheres negras têm uma força superior à população em geral.

Após a descoberta, feita por um médico residente, a busca de Ivani pelo tratamento foi imediata. A doença acomete mais a população negra e tem como característica o entupimento de pequenos vasos sanguíneos. Isso acontece devido ao formato de foice das hemácias, o que dificulta a chegada de oxigênio aos tecidos. Esse processo causa episódios de dores intensas, praticamente insuportáveis, e que geralmente são tratadas com morfina.

Com o diagnóstico em mãos, a pastora evangélica relata ter ouvido, por diversas vezes, frases como: “será que não é exagero, não? Você está exagerando nisso? Não é isso que você está sentindo”. Para a coordenadora do projeto “Doença falciforme: Linha de cuidados na atenção primária à saúde” do Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio diagnóstico (NUPAD), Ana Paula Pinheiro Chagas, o preconceito dificulta a avaliação das pacientes, o que pode acarretar em um tratamento ineficaz.

“As pessoas subestimam a dor, por causa desse mito de que a mulher negra é mais resistente, o que representa um problema na escuta e acolhida dessa paciente. Na medida em que esse profissional de saúde não tem essa habilidade, percepção ou até mesmo conhecimento, o tratamento da dor não vai ser o ideal. Então, ocorre o subtratamento da dor por causa de um desconhecimento e uma má avaliação do quadro”, afirma.

Ivani Junia usa a informação como principal forma de combater o preconceito, que subestima a sua dor. Foto: Carol Morena. 

De acordo com Ana Paula, o atendimento às pessoas com anemia falciforme não deve visar apenas a doença. Para promover o atendimento integral a essas pessoas, é preciso que os profissionais considerem questões como a experiência pessoal da paciente com a própria doença, quais as dores que ela sente, a vivência de preconceito e racismo, e a violência que ela sofre no dia a dia. Para a especialista, além do sofrimento físico, a falta de atenção às pacientes pode levar a sofrimento emocional e psíquico, já que a desesperança pessoal é aumentada.

De acordo com o Manual “Doença falciforme – Condutas básicas para tratamento”, produzido pelo Ministério da Saúde“, em 2012, a incidência de pessoas negras com a anemia é maior devido a herança genética. No continente africano, ocorreu uma mutação genética, trazida ao Brasil, devido ao tráfico de escravos no período colonial. Essa modificação foi transmitida aos descendentes e até hoje é característica dessa população. 

Tratamento

O tratamento especializado com hematologistas deve ser realizado nos Hemocentros, atualmente referenciado à Fundação Hemominas em Minas Gerais. Já o atendimento de urgência está distribuído entre os hospitais e pronto-atendimento. Porém, as Unidades Básicas de Saúde, conhecidas como postos de saúde, são o apoio médico mais próximos às pessoas em caso de necessidade.

Para garantir que receberia atendimento adequado para suas crises de dor, Ivani passou a buscar mais informações sobre sua condição. Tanto, que ela costuma ter em sua bolsa o fluxograma feito pelo Ministério da Saúde que mostra como deve ser feita a avaliação de seu quadro clínico. “Por diversas vezes, os profissionais tratavam o quadro de sofrimento como uma situação que podia esperar”, conta Ivani.

Além disso, ela começou a frequentar palestras promovidas pela Associação de Pessoas com Doença Falciforme e Talassemia do Estado de Minas Gerais (Dreminas), na qual compreendeu melhor a complexidade que envolve a temática da anemia falciforme. Ivani acredita, no entanto, que a maior divulgação sobre a doença nos últimos anos, tornou o atendimento recebido um pouco mais humanizado.

“Em Belo Horizonte, hoje em dia, tem UPAS que já são bem humanizadas. Comigo, os médicos, principalmente os mais novos, falam que já estão acostumados com a doença”, destaca.

Laryssa Campos*- estagiária de Jornalismo

edição – Karla Scarmigliat